A enfermeira revolucionária “expulsa” de Portugal e aclamada no Reino Unido
“Melhor Enfermeira” da região Leste de Inglaterra: Sílvia Nunes, a enfermeira de 33 anos que rumou ao Reino Unido para procurar um emprego que não encontrava em Portugal, acabou por ganhar um dos dois prémios para o qual estava nomeada nos Great British Care Awards.
O prémio da categoria de “Care Registered Nurse” pretende reconhecer um profissional de cuidados de longa duração que demonstre excelentes qualidades clínicas e de gestão e “um alto nível de dedicação e apoio às pessoas que ajuda”.
Depois de terminar a licenciatura na Escola Superior de Saúde do Vale do Ave, em 2013, Sílvia tentou encontrar emprego em Portugal na sua área, mas sem sucesso. Apesar de quase não falar inglês, em 2014 decidiu rumar ao Reino Unido em busca de uma posição na área da enfermagem.
Na hora da despedida, a boleia até ao aeroporto não costuma ser encargo da família. É uma espécie de pacto de não-agressão, drible a choradeiras mais demoradas. Desta vez aconteceu a excepção: a mãe, a irmã e as três sobrinhas ficaram em Vila do Conde, mas o pai conduziu até ao aeroporto Francisco Sá Carneiro, traje de homem forte da casa vestido. Dentro de poucas horas, Sílvia Nunes apanhará o avião low cost que a leva de volta ao Reino Unido, onde vive desde Agosto de 2014. Mas antes do embarque há ainda uma entrevista para dar, a fechar umas mini-férias agitadas por uma notícia feliz: pelo segundo ano consecutivo, a enfermeira de 33 anos está nomeada para o prémio de melhor profissional de cuidados de longa duração do Reino Unido e integra ainda a lista dos melhores da região leste de Inglaterra.
A partida tem, ainda assim, sabor agridoce. Portugal é família, Inglaterra a vida arrumada. Portugal foi rejeição, Inglaterra reconhecimento. “Não era nada disto que eu queria”, nota entre o lamento e o conformismo quando questionada sobre a condição de emigrante. Mas enquanto a enfermagem não estiver nas prioridades do Serviço Nacional de Saúde, voltar é uma impossibilidade.
Quando era menina, Sílvia sentia “medo” de qualquer profissão relacionada com saúde. Concluiu o secundário num curso profissional, convencida de que era “um pouco preguiçosa para o estudo”, e nada fazia prever uma viragem. Aconteceu com a entrada nos Bombeiros Voluntários de Vila do Conde. Queria desafiar-se a si mesma, a mãe antevia uma desistência rápida. Mas ela foi ficando. Fez cursos, conheceu hospitais, unidades de cuidados paliativos. Viu sofrimento e o bálsamo para ele. O “bichinho” foi ganhando espaço — e o “medo” de criança caiu de vez em 2009, ao entrar no curso de Enfermagem na Escola Superior de Saúde do Vale do Ave, em Famalicão.
A licenciatura revelou-se a confirmação do “caminho certo”. O fim dos estudos, a declaração de um percurso difícil. Sílvia entregou currículos em clínicas, hospitais, unidades de cuidados continuados. Nas entrevistas de emprego apontaram a falta de experiência como justificação das respostas negativas. Na maior parte dos casos, nem resposta tinha. “Fiquei triste”, admite a enfermeira ao recordar aquele período. “Via colegas com três e quatro empregos e eu não tinha nenhum”, comenta para logo deixar no ar uma possível explicação: “Provavelmente um emprego não chega para pagar as contas. É preciso discutir isto.”
Isto é um cenário sem espaço para optimismos: muitos jovens formados todos os anos e sem local de trabalho, precariedade, gente tratada como “máquinas”, poucos enfermeiros para muito serviço, a qualidade dos cuidados em causa, um grande desgaste físico e psicológico, a não revisão da carreira. Motivos para as greves que se têm verificado, para um novo período de protesto marcado a partir de 8 de Novembro. Ainda há dias, um colega de Sílvia lhe enviava uma mensagem a queixar-se de falta de reconhecimento das chefias. Sempre que conversa com quem resiste em Portugal, parece-lhe que está a assistir a um filme de narrativa incoerente: “Não percebo por que não ouvem os profissionais. Se for despedida ou não tiver emprego, todo um sistema se desmorona, toda a família, as ligações com outras. Não estão a ver a fotografia alargada.”
O descontentamento foi empurrão para a decisão de Sílvia. Em Agosto de 2014 comunicou ao namorado, agora marido, a decisão: ia mudar-se para casa da futura sogra, em Thetford, cidade a 140 quilómetros a nordeste de Londres, e procurar emprego por lá. Sem garantias, com um baixo domínio da língua. Disposta a virar a vida do avesso para lhe encontrar o lado certo. “Cheguei a procurar emprego como empregada de limpeza. Podia ir ganhando alguma coisa e melhorar o meu inglês”, divulga. Não precisou. Um dia, uma conhecida falou-lhe de uma vaga como auxiliar no lar onde trabalhava e Sílvia agarrou a oportunidade.
“Fui aprendendo a falar e a escrever. Apontava, perguntava o nome das coisas. Ia ao Google Tradutor. Toda a gente me ajudou. Em casa, via televisão local, lia jornais e revistas”, conta, dizendo que nem com o Brexit o apoio se abalou. Esperou dez meses pelo PIN, cartão profissional que lhe permitia trabalhar como enfermeira no Reino Unido. De auxiliar passou a enfermeira, depois a directora clínica, a vice-directora. No lar Ford Place, onde está agora, conquistou colegas e residentes. E isso conduziu-a à nomeação para os dois prémios que a tornam notícia por estes dias, cujos resultados serão conhecidos durante o mês de Novembro.
O poder do elogio
Sílvia Nunes, crente no poder do elogio, sorri. O reconhecimento é importante, consente, sobretudo quando as distinções vêm sem avisos e preparativos prévios. “Nem sabia que havia estes prémios quando comecei, já trabalhava assim”, graceja. Os National Care Awards distinguem anualmente os melhores profissionais do Reino Unido. Na categoria Care Registered Nurse, onde a portuguesa está nomeada, reconhecem-se enfermeiros com excelentes qualidades clínicas e de gestão e especial cuidado com os doentes.
O documento da nomeação da vilacondense — seleccionada por chefes, colegas e idosos do lar Ford Place — merece honras de caixilho. Palavra a um dos residentes: “Quando está a trabalhar, a Sílvia faz-nos sentir a pessoa mais importante da vida. Nunca nos faz sentir que está com pressa, mesmo quando quer correr para casa. Sinto que posso ser honesta com ela sobre o que sinto porque ela compreende-me.” Testemunho de um colega: “A Sílvia apoia-nos sempre. Pergunta como nos sentimos e sinto que posso falar com ela de forma confidencial se for preciso.” Avaliação da directora Alison Charlesworth: “Consegue um balanço óptimo entre o seu papel de enfermeira e de vice-directora. É solidária, cheia de iniciativas e ideias, com um sorriso capaz de iluminar a casa. É uma alegria trabalhar com o entusiasmo, compaixão e empatia dela.”
Há acções específicas a sublinhar. A enfermeira aplicou mudanças na nutrição, reforçando os lacticínios, fruta e mel para compensar cortes no financiamento público dos suplementos alimentares. A alguns residentes mudou a alimentação e medicação para melhorar o seu bem-estar e controlar o aumento de peso.
Sílvia não se sente “melhor do que ninguém” — só gostava que também em Portugal os colegas pudessem ter os mesmos incentivos. O que podemos aprender com o Reino Unido? “A respeitar a enfermagem”, contesta sem qualquer hesitação. No seu lar em Thetford, há dois enfermeiros a trabalhar durante o dia, de forma permanente, um presente toda a noite. E esse quadro, lamenta, é algo demasiado distante para a maioria dos lares portugueses. “Cá não me candidatei a lares porque não concordava com a forma como trabalhavam. Os enfermeiros entram e saem, não ficam. Quando andava nos bombeiros ia muitas vezes buscar pessoas aos lares e só me apetecia trazer aquelas pessoas para minha casa”, diz a jovem, agora a estudar para ser directora de lares. “Sou um bocadinho revolucionária”, aponta para logo fechar o assunto: “Aquilo não era para mim.”
A separação da família ainda mói. Durante anos, os pais estiveram emigrados em Angola, Sílvia e a irmã em Portugal. E quando se reformaram e voltaram a casa, ela emigrou. “É óbvio que custa.”
Para enganar a saudade, há o Skype e o telemóvel, um voo de apenas duas horas marcado umas quatro vezes por ano, às vezes viagens de carro de dois dias. E em Thetford, uma casa já feita lar, com gatos e tudo. “Gostava de abrir um lar cá, com uma unidade de cuidados paliativos com as regras de lá”, diz quando o assunto são os sonhos. Para já, Sílvia sabe que é desejo nas nuvens, inalcançável. Mas mesmo sem vislumbrar mudanças breves, não deixa fugir a visão de um país com todo o potencial. Só falta mudar o chip.
In: O Publico/ Sofia Neves
Imagem: Nelson Garrido