Dilema biológico: parasita ou bode expiatório?
Das mesas de café às reuniões familiares, dos comícios políticos à produção daquilo que devia ser conhecimento; dada a conjetura sociopolítica, o discurso a favor da abolição de subsídios como o subsídio de desemprego tem vindo a recuperar tração nos últimos tempos.
É um discurso pautado, por um lado, na injustiça que é existir uma parte da sociedade que vive “às custas da outra”, e, por outro, na ineficiência que estes subsídios induzem no mercado de trabalho.
A explicação económica por detrás do argumento da ineficiência prende-se com o facto de que, como o subsídio de desemprego traz mais estabilidade a alguém que perde o emprego, muitas vezes quem está nesta situação tem incentivos a permanecer nela durante mais tempo: a urgência de procurar um emprego não será tanta comparando com uma situação em que o indivíduo não tem meios de subsistência garantidos caso fique sem trabalho.
Existe, contudo, uma pequena nuance que seja por motivos de simplificação económica, seja por motivos de demagogia política é conveniente ignorar: a relação entre estes subsídios e os salários mínimos e médios.
É a comparação entre estes dois valores, e não o valor do subsídio per se, que determina se o indivíduo tem mais ou menos incentivos a procurar emprego. Se o valor do salário que a pessoa ganharia se estivesse a trabalhar fosse muito superior ao valor do subsídio, esta teria fortes motivações para procurar emprego, de modo a não ver o seu nível de vida muito prejudicado.
Assim, o discurso sobre subsídios e parasitas sociais, que não tem quaisquer outros resultados senão inflamar animosidades sociais, serve de mecanismo de distração em relação ao debate que apresenta a solução para este desalinhar de incentivos (e claro, muito mais que isso): o debate sobre os salários mínimos e médios precários e a má remuneração do trabalho.
Assim como na maioria dos países desenvolvidos, a economia portuguesa segue uma tendência de aumento da produtividade acompanhada da estagnação dos salários mínimos e médios, significando isso que os trabalhadores estão a gerar mais riqueza, mas que não estão a ganhar mais por isso.
Para além disso, como apontado por autores como o economista francês Thomas Piketty na sua obra O Capital No Século XXI, desde o início deste século tem vindo a observar-se também uma tendência de aumento do peso dos rendimentos do capital na riqueza total dos países em deterioramento do peso ocupado pelos salários. Mais, quer os rendimentos do capital, quer os rendimentos do trabalho têm vindo a concentrar-se nos 50% a 1% das pessoas mais ricas dos países.
Daqui surgem inúmeras reflexões possíveis, mas escolho expressar apenas duas.
A primeira é a de que temos um processo de desvalorização do trabalho (embora produtivo e qualificado) a favor dos altos juros e das altas rendas a desenvolver-se mesmo à frente dos nossos olhos e que, mesmo assim, enquanto sociedade, estamos mais preocupados em andar de mata moscas em riste à caça do parasita.
A segunda é a de, no sentido de não contribuir para a economia com trabalho, um patrão que vive maioritariamente das rendas do capital talvez viverá tão “à custa do trabalho dos outros” como alguém que vive de subsídios.
O subsídio de desemprego, além de visar permitir que alguém que esteja numa situação tão delicada quanto a de estar sem emprego tenha uma vida minimamente digna, também gera impactos positivos na luta por salários mais elevados. Isto acontece porque, uma vez que por ter o mínimo de estabilidade, o indivíduo não se vê tão coagido a aceitar qualquer contrato de trabalho precário, ganhando assim maior poder negocial para exigir salários mais elevados.
Por muito que os economistas gostem de fingir que a economia não é uma ciência social, a verdade é que o é, e muitas vezes é instrumentalizada para legitimar políticas de opressão e de violência contra os menos favorecidos.
Mas conhecê-la e usá-la para avaliar discursos políticos pode ser uma arma muito poderosa na luta por sociedades mais igualitárias.
Neste sentido, no que diz respeito a este debate sobre subsídios, percebemos que tentar virar trabalhador contra trabalhador, recorrendo a uma narrativa duplamente falsamente moralista e de falsa eficiência, para além de pura desonestidade intelectual, está a afastar-nos da união necessária para fazer real oposição ao status quo.
Um status quo de uma sociedade que condena moralmente quem não trabalha, mas que ao mesmo tempo cultua um “equilíbrio” de mercado que não paga aos trabalhadores o que lhes é devido pelos acréscimos de trabalho e produtividade que dão praticamente de graça à nação (elites, leia-se).
Texto de: Sofia Pires
Artigo publicado em parceria com a Associação de Debates Académicos da Universidade do Minho