Estará a GNR em “guerra” com a Marinha?
A GNR comprou à Holanda uma megalancha de 35 metros, segundo a edição online do DN, para fiscalização e prevenção criminal em alto mar. Custou 8 485 770 euros e é a primeira de um lote de quatro, financiada a 75% por fundos europeus. A empresa holandesa foi escolhida no âmbito de um concurso público internacional.
Esta nova lancha é de maior dimensão do que quaisquer lanchas de fiscalização rápida da Marinha – das quais, aliás, só estão operacionais quatro das nove existentes, por falta de verbas para a manutenção.
A notícia caiu que nem uma bomba neste ramo das Forças Armadas, com altas patentes a questionarem a duplicação de meios, os custos acrescidos e até a acusarem o Governo de estar criar de forma “camuflada” uma Guarda Costeira, “para depois fazer arrear a Marinha”.
Segundo o comando-geral da GNR, está previsto que esta nova lancha entre em operações durante o 1.º semestre de 2021, “depois de um período de formação e adaptação para que todos os militares da tripulação estejam aptos a operarem com a mesma”.
A lancha terá oito tripulantes, cuja formação começou a ser feita em 2018, com a colaboração da Guardia Civil (Espanha) e a Guarda di Finanza (Itália).
Patrulhas até aos Açores e Madeira
Fonte oficial diz que o objetivo desta aquisição “foi adquirir meios de transporte e de equipamento operacional que sejam considerados necessários à intervenção no decurso das operações conjuntas da Agência FRONTEX”, bem como integrar as “missões de vigilância, patrulhamento e interceção terrestre ou marítima em toda a costa e mar territorial do continente e das regiões autónomas.
“O recorte costeiro e áreas sensíveis do território português determinam a extrema necessidade de reforço de observação em embarcações próprias para o patrulhamento marítimo”
Numa resposta extensa enviada ao DN, a GNR sublinha que “o recorte costeiro e áreas sensíveis (angras, enseadas, etc.) do território português determinam a extrema necessidade de reforço de observação em embarcações próprias para o patrulhamento marítimo”.
Daí a decisão de submeter a candidatura para aproveitar o orçamento reforçado do Fundo de Segurança Interna da União Europeia, que permite “adquirir quatro embarcações para patrulhamento costeiro (três Coastal Patrol Boat e um Coastal Patrol Vessel), cujas especificações técnicas respeitam o estabelecido pela Agência FRONTEX, que permitam ampliar a capacidade de vigilância e deteção, potenciando mais e melhor controlo das atividades de vigilância da Fronteira Externa da União Europeia”.
Maior permanência no mar
De acordo com a mesma fonte oficial, esta lancha “irá dotar a Guarda de capacidade própria que lhe permite assegurar maior permanência no mar territorial e suportar condições de mar mais adversas, bem como, quando necessário, navegar até às regiões autónomas e assegurar a missão da Guarda também naqueles territórios, algo que as atuais embarcações à disposição da Guarda não permitem”.
Questionada sobre em que tipo de missões sentiu necessidade de um meio mais potente como é esta lancha, a GNR destaca “as missões que necessitem de permanência no mar de forma ininterrupta (operação com mais de dois dias seguidos, sem ter necessidade de entrar em Porto), nomeadamente missões de vigilância, patrulhamento e interceção marítima, no mar territorial do continente e das Regiões Autónomas”.
A GNR assinala que “se trata de uma embarcação policial de patrulhamento costeiro, não de um navio de Guerra, que se destina a complementar a componente de vigilância do Sistema de Vigilância Comando e Controlo (SIVICC), através de patrulhamento junto à fronteira marítima”.
Sobre a articulação com a Marinha, a GNR garante que “as aquisições previstas não comprometem as determinações existentes no âmbito da articulação e emprego de meios operacionais, mantendo-se os atuais canais de coordenação existentes”.
Sublinha que tanto a Marinha como a Guarda “possuem Centros Operacionais a funcionar 24 horas por dia, 7 dias por semana, pelo que a articulação é permanente através dos seus oficiais de serviço”.
A aquisição das outras três lanchas de menor dimensão, com um custo de 2,2 milhões de euros, também com o financiamento do FSI a 75%, ainda não foi concluída, porque, segundo a GNR “as propostas apresentadas não cumpriram com as especificações técnicas exigidas no Caderno de Encargos”.
Foi lançado um novo concurso público, que também não foi adjudicado, pelo mesmo motivo. Assim, diz a GNR, “está previsto para o próximo ano o lançamento de novo procedimento tendente à aquisição das três Coastal Patrol Boats para a UCC”.
700 anos da Marinha desprezados
Mas na Marinha, os argumentos da GNR não acalmam a indignação.
O ex-chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Melo Gomes lamenta que não haja “mais coordenação” entre o Ministério da Administração Interna (MAI) e o Ministério da Defesa Nacional (MDN) nestas decisões de aquisição, frisando que esta articulação, “que poderia permitir uma boa racionalização de meios” tem sido “muito deficitária”.
Este oficial-general da Armada considera que se está “a criar uma duplicação de capacidades que vai custar muito mais ao erário público. Parece que, se uma Marinha é muito cara, o melhor é ter duas, duplicar recursos”. Lamenta que “a experiência dos 700 anos da Marinha” esteja a ser “desprezada”.
E salienta: “Temos de fazer bem com o pouco que temos, partilhando recursos, não duplicando, sem sequer haver colaboração. O duplo uso, previsto no Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) é precisamente isso, usar os meios racionalmente e isso é o que fazem os países com poucos recursos como o nosso. A Marinha sempre defendeu esse princípio. Desde o século XV, quando as caravelas eram ao mesmo tempo navios mercantes e de combate. Num país de recursos limitadíssimos é um crime de lesa pátria não racionalizar os meios que temos.”
Melo Gomes recorda que as regras desse duplo uso, estão definidas no decreto regulamentar 86/2007. “Estabelece as regras da colaboração das polícias com a Marinha. Segundo este diploma, as operações contra o tráfico de droga, são coordenadas pela PJ, as de imigração ilegal e tráfico de serem humanos, pelo SEF; as aduaneiras e fiscais pela GNR”, afirma.
Aproveitar meios
Na sua opinião, “o evidente maior peso político do MAI tem feito com que essa distribuição de tarefas seja ignorada. Alguém perguntou à Marinha ou à Autoridade Marítima se podem fazer essas missões? Com polícias a bordo resolve-se o problema da limitação legal. Já tivemos também navios integrados em missões da Frontex”.
Assinala as “múltiplas operações de sucesso que têm sido feitas pela PJ, utilizando os navios da Marinha, bem como o SEF”, mas não vê a mesma atitude de sinergias da parte da GNR.
“A GNR edificou um Centro de Controlo próprio, sem ligação à Marinha”, aponta. Sobre a resposta da GNR segundo a qual a articulação com o Ramo se faz “através dos oficiais de serviço”, Melo Gomes ironiza: “Isso nem no tempo de Napoleão se fazia assim. A comunicação tem de ser feita através de sistemas.”
O ex-CEMA critica ainda “os dois pesos e duas medidas do Estado: enquanto na GNR, tudo se resolveu num ano, na Marinha estamos há anos à espera dos seis NPO que nos fazem falta como de pão para a boca. Enquanto o MAI delegou as competências desta aquisição no comandante-geral da GNR, e tudo se resolveu num ano, já na Defesa demora. Só em agosto passado o ministro assinou um despacho a dar orientações políticas para essa aquisição. Mas não à Marinha, foi à holding IdD Portugal Defense, e estamos desde essa data à espera da Resolução de Conselho de Ministros”.
A concluir, Melo Gomes chama a atenção para que “estar ininterruptamente no mar, como pretende a GNR, exige muita experiência. O mar dos Açores, por exemplo, no inverno é muito exigente. Só quem não conhece pode pensar outra coisa”.
Guarda Costeira “encapotada”
Na mesma linha de crítica está o Almirante Pires Neves, ex-vice CEMA, na reforma. “Se se pretende que isto seja o embrião de uma Guarda Costeira, com a UCC à cabeça, então a decisão deve ser assumida pelo poder político”, assinala.
O almirante identifica “um enorme contrassenso”, tendo em conta que “há um duplo uso definido no Conceito Estratégico de Defesa Nacional e está regulamentado”.
“Qualquer cidadão pode e deve questionar se fizeram as contas sobre quanto pode custar esta duplicação de meios”
Nota que “qualquer cidadão pode e deve questionar se fizeram as contas sobre quanto pode custar esta duplicação de meios, ou quanto custa uma Guarda Costeira e uma Marinha”.
Salienta que “os meios da Marinha, tal como os de todas as Forças Armadas, obedecem a um rigoroso planeamento que fica depois definido na Lei de Programação Militar (LPM) e é escrutinado rigorosamente a vários níveis, desde o governo, à Assembleia da República e até ao Presidente na República, que preside o Conselho de Defesa Nacional”.
E interroga-se “onde encaixa este meio da GNR no sistema de forças nacional? Certamente estará à revelia dos interesses do Estado, que devia pugnar pela articulação entre a defesa nacional e a segurança interna. Será que o MDN foi consultado?”.
Arrear a Marinha
Pires Neves reforça que “as Forças Armadas são obrigadas a cooperar com as Forças de Segurança, mas não nos podemos dar ao luxo de desprezar meios e por isso existe o duplo uso. Qual é o racional deste meio a GNR? Se for pela Frontex, a Marinha também já participou”.
Lança uma provocação: “É melhor assumirem de uma vez por todas que as Forças Armadas não são precisas. Assumam que só precisam das Forças e Segurança e de uma Guarda Costeira.”
O ex-vice-CEMA garante que não está “a por em causa que a GNR precise de melhores meios, mas sim a forma como estas decisões são tomadas. De uma forma encapotada estão a criar uma Guarda Costeira, para depois fazer arrear a Marinha”.
Questiona se “todos estão coniventes, incluindo todos os partidos políticos” e “por que não foi esta questão discutida no parlamento”.
“Fico muito triste que Portugal não aprenda. As interdependências são cada vez maiores. Todos os decretos que iluminam as missões da Forças Armadas falam na cooperação com as Forças de Segurança”, assinala.
“Os militares obedecem, e se nos disserem para fechar a loja, fechamos. Mas não está certo fazerem-nos isto de forma camuflada, usando fundos europeus. Ou o objetivo é edificar uma Guarda Costeira de borla?”
Considera que “não dar dinheiro à Marinha e olhar só para a GNR porque pode ir buscar fundos europeus é um pouco caricato para um país. Não pode haver meio algum que não obedeça a um racional. Tem de haver escrutínio para as pessoas saberem onde se gasta o dinheiro”.
Destaca que “não há guerra entre a Marinha e a GNR. Há que cooperar, mas para isso tem de haver lealdade, não haver benefício de um contra o outro. Isso não é cooperação, é submissão”.
Marinha não quer perder “monopólio”
Outra opinião tem o capitão de mar e guerra Silva Paulo, doutorado em Políticas Públicas, com uma tese sobre a Autoridade Marítima.
Sublinha que “esta guerra da Armada com a GNR assenta numa lógica da organização dos serviços públicos, segundo a qual cada serviço se ocupa de um setor e resiste a qualquer iniciativa que ponha em causa esse monopólio”.
Frisa que “há, pelos menos, 25 anos, desde a criação da Polícia Marítima, que a Armada se sente acossada nos seus poderes do mar que, para ela, são inalienáveis. Não quer qualquer concorrência”.
A razão principal para esta atitude da Marinha, apontada por este oficial superior, também engenheiro naval, é que “se pode ficar a saber cada vez mais as ineficiências na sua gestão”. Uma segunda razão, que acrescentou, é a perda de benefícios de que os militares da Armada usufruem, há quase dois séculos.
Reconhece como “bom exemplo o “duplo uso” dos meios militares, nas operações conjuntas da Marinha de apoio à Polícia Judiciária (PJ) em alto-mar (combate ao tráfico de droga) e ao SEF (imigração ilegal e tráfico de seres humanos), ou aos inspetores das pescas”, mas lamenta que o mesmo não aconteça com a Polícia Marítima e com a GNR, que “a Marinha vê como ameaça ao seu poder”.
A lógica do míssil
Silva Paulo considera por isso “legítimo e justo” que a GNR adquira estas novas lanchas. “A Marinha pode dizer que tem meios disponíveis para essas missões, mas o que prevalece é a lei e o Estado de direito democrático. Não é por ter mais meios. Só se os disponibilizar, com os oficiais da GNR ou os agentes da PM a liderarem sempre as operações. Mas muitos oficiais da Armada rejeitam este modelo, porque não gostam de ser uma espécie de táxi da GNR e da PM.”
Sublinha que “os militares são treinados para combater inimigos. Não são treinados, como os polícias, para defender o cumprimento da lei e os direitos dos cidadãos. A lógica do militar moderno é o míssil, não é a persuasão. As pessoas têm que olhar os militares e ter em conta que a sua doutrina é para a guerra.
Sobre uma potencial maior despesa para o Estado devido à “duplicação de meios”, este oficial da Armada na reforma nega que haja “fundamento teórico ou empírico para haver custos acrescidos, e entende que a solução seria “a Marinha transferir todos os seus meios, adequados a estas ações policiais, para a GNR e para a PM”.
“Cada entidade deve ficar com os recursos para cumprir as suas missões, de acordo com a lei – a defesa militar, para a Marinha; a fiscalização e a investigação criminal para as forças se de segurança”.
Advoga que “cada entidade deve ficar com os recursos para cumprir as suas missões, de acordo com a lei – a defesa militar, para a Marinha; a fiscalização e a investigação criminal para as forças se de segurança”.
O ideal, conclui, “seria a criação de uma Guarda Costeira ou Guarda Marítima, fundindo a Unidade de Controlo Costeiro da GNR com a Polícia Marítima, juntando todos os meios de ação marítima disponíveis destas forças e não militares da Marinha”.
IN: DN