Francisco Sá Carneiro, o Kennedy Português
Foi há 37 anos que a hora de jantar dos portugueses foi subitamente interrompida por uma notícia que os deixou incrédulos. Os que tinham televisão fixaram o olhar no pivot que assegurava o telejornal da RTP, num tempo em que a maioria dos portugueses ainda via televisão a preto e branco e não havia telemóveis. O pequeno avião em que o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, e o ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa viajavam de Lisboa para o Porto, tinha caído pouco depois de levantar voo.
Há 37 anos, nesse dia 4 de dezembro de 1980, o país ficou em choque, assistindo incrédulo à morte prematura e inesperada de sete pessoas: o chefe de Governo Francisco Sá Carneiro e a sua companheira Snu Abecassis, o ministro da Defesa Nacional Adelino Amaro da Costa e Maria Manuela, sua mulher, António Patrício Gouveia, chefe de gabinete de Sá Carneiro, e os dois pilotos do Cessna.
Trinta e sete anos depois, a justiça portuguesa nunca encontrou provas que sustentassem a hipótese de atentado, o Parlamento fez 10 comissões de inquérito, houve centenas de artigos e muitos livros escritos sobre o tema…. mas a dúvida persiste no espírito de muitos, sobretudo “de alguns admiradores de Sá Carneiro que têm dificuldade em admitir que ele tenha morrido num acidente”
Acidente ou atentado…
Em 1983, José Moreira preparava-se para revelar tudo que sabia sobre a queda do Cessna. Na véspera de testemunhar, foi encontrado morto. A tese de morte acidental é agora refutada pela Comissão.
Este pode ter sido o último capítulo da investigação à tragédia de Camarate. E, mais uma vez, todos os indícios recolhidos voltam a apontar para uma conclusão: a queda do Cessna que vitimou, entre outras pessoas, Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, teve, de facto, mão criminosa.
A conclusão não é nova, mas existem, ainda assim, peças a juntar ao puzzle em que se transformou a noite de 4 de dezembro de 1980. De acordo com o relatório preliminar da X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia do Camarate, a que o Observador teve acesso, José Moreira – testemunha central em todo o processo – e Isabel Silva [a sua companheira] foram, “com elevado grau de confiança“, assassinados a poucos dias de José Moreira revelar no Parlamento tudo o que sabia sobre o caso.
Estas conclusões desmentem a tese de morte acidental que chegou a ser dada com certa na altura e colocam a Polícia Judiciária e a Procuradoria-Geral da República no centro das suspeitas. Segundo o relatório preliminar, assinado pelo deputado social-democrata Pedro do Ó Ramos, a investigação foi “deficitária, com gritantes e evidentes lacunas”. Embora nunca seja mencionada a palavra encobrimento, o relator conclui que é “difícil crer que as falhas se tenham devido, apenas, a eventuais descuidos”.
O mistério da morte de José Moreira
As mortes de José Moreira e de Isabel Silva – que terá sido apenas uma vítima colateral – sempre estiveram envolvidas em grande mistério. De acordo com o relatório preliminar “não foi desmentido” que José Moreira, proprietário de aviões, colocou uma aeronave “à disposição da campanha presidencial do General Soares Carneiro”, candidato apoiado por Francisco Sá Carneiro. Avião que foi apreendido a poucos dias da fatídica noite.
Depois da tragédia de Camarate José Moreira “terá financiado uma investigação privada ao homicídio” de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa e estava pronto para depor na I Comissão de Inquérito ao caso. No entanto, a 5 de janeiro de 1983, a poucos dias da audição, José Moreira e Isabel Silva foram encontrados mortos em casa por inalação de monóxido de carbono.
Ora, de acordo com a análise dos tecidos elaborada pelo Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses a pedido da X Comissão de Inquérito, José Moreira apresentava sinais de “ruturas nos alvéolos pulmonares”, o que só pode acontecer em duas situações: afogamento ou asfixia mecânica. Ou seja, descartada a hipótese de afogamento, José Moreira foi, de alguma forma, impedido de respirar.
A hipótese de suicídio também foi analisada, mas, mais uma vez, todos os indícios parecem apontar noutra direção. “A disposição dos corpos, bem como algumas marcas encontradas nos cadáveres [“algumas escoriações nos joelhos e no ombro esquerdo, para além de um desvio do septo e hemorragia nasal”] e a virtual impossibilidade de os elevados níveis de monóxido de carbono advirem do esquentador, indicam que não se terá tratado de suicídio”, pode ler-se no documento. Se dúvidas restassem o relatório acrescenta: “(…) conclui-se que a morte de José Moreira e Elisabete Silva não foi acidental, como terá sido provocada por terceiros“.
E já em 1983 as análises aos cadáveres do casal apontavam para a rutura dos alvéolos pulmonares. No entanto, estes exames só “viriam a ser juntos ao processo a 11 de abril de 1983”, quatro meses depois das mortes de José Moreira e de Elisabete Silva e sem nunca terem chegado às mãos do médico responsável pela autópsia. Isto, por inoperância da PJ, cuja investigação “falhou”, conclui a comissão.
Na altura, e apesar de todos os indícios apontarem para a fragilidade da investigação da PJ, a PGR teve um entendimento diferente: a investigação disciplinar conduzida pela PGR não identificou “falhas relevantes” na atuação da PJ e do Instituto de Medicina Legal. Mas para a comissão não restam dúvidas:
A investigação disciplinar produziu um relatório que omite, de forma gritante, factos relevantes que poderiam não só confirmar uma deficiente atuação por parte da Polícia Judiciária como resultar na possibilidade de exclusão da tese de morte acidental de José Moreira e Elisabete Silva. Pelo relatório se conclui que estaomissão terá sido deliberada, tendo tido, como único objetivo, acorroboração da tese inicial aventada pela Polícia Judiciária“.
O Fundo da Defesa Militar do Ultramar e as ligações à exportação de armas para o Irão
Há muito que se discute que o alegado homicídio de Adelino Amaro da Costa, então ministro da Defesa, está relacionado com a investigação que estava a conduzir ao Fundo da Defesa Militar do Ultramar e os entraves que estava a colocar à exportação de armas para o Irão. Agora, a comissão de inquérito veio acrescentar novos detalhes.
Apenas “dois dias antes do atentado“, Adelino Amaro da Costa “terá pedido esclarecimentos adicionais” ao gabinete do chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMFGA) “sobre a expedição de armas para o Irão”, o que parece indiciar que existia, de facto, exportação de armamento para o país asiático feito à revelia – ou, pelo menos, sem o conhecimento completo – do ministro da Defesa. Na mesma altura, também Francisco Sá Carneiro “pediu esclarecimentos adicionais relativamente à exportação de armas para países como a Guatemala, Argentina e Indonésia”.
De acordo com o relatório preliminar, há pelo menos três registos de troca de armamento com destino ao Irão com solo luso como palco. Ainda em 1980, “houve lugar ao transbordo de munições de um avião israelita para um avião da Iran Air, no aeroporto da Portela”. Mais tarde, quatro dias após o atentado, e depois de analisada a correspondência do Gabinete do CEMFGA, “foi possível apurar a expedição de armas para o Irão”. E, já em 1981, a 26 de janeiro, quando ainda vigorava o embargo comercial ao país asiático, volta a ser possível encontrar registos de “envio de material militar para o Irão”. Ou seja, apesar de existir um corte de relações entre Portugal – e vários países europeus – com o Irão, foi possível apurar que existiu, pelo menos em três ocasiões, transporte de armas para aquele país asiático sem autorização expressa do ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa.
Embora a comissão não tenha conseguido encontrar “um nexo de causalidade comprovável” entre o Fundo do Ultramar (FDMU) e comércio de armas, há pormenores que continua por explicar. Por exemplo, como é que um fundo que foi formalmente extinto em 1980 permaneceu ativo como “fundo privativo até 1993” – ano em que foi materialmente extinto -, “tendo sido utilizados cerca de 481 milhões de escudos neste período sem qualquer escrutínio“.
Mais: a análise às contas anuais de gerência do fundo privativo do EMGFA entre 1982 e 1992 permitiu concluir que houve “gastos não documentados” envolvendo, por exemplo, “obras e construções”. Mas o mistério adensa-se verdadeiramente quando se recua até antes da morte de Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa: entre 1978 e 1980, “as contas anuais do FDMU não foram aprovadas” pelo então Presidente da República e chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, António Ramalho Eanes.
O mistério em torno dos valores que saíram e entraram no FMDU já não é de agora. Em comissões de inquérito anteriores, Maria da Conceição Rodrigues, inspetora de Finanças que avaliou as contas do Fundo do Ultramar já tinha revelado as dificuldades em descobrir o rasto ao dinheiro. “Nós vimos que havia dinheiro fora do Fundo, que saiu e que esteve, ou não, a financiar qualquer coisa, não sabemos o quê. Pode ter estado aplicado noutros bancos, não sabemos. Sabemos que esteve fora e que depois voltou”, sublinhou na altura. Continua, no entanto, sem ser possível estabelecer um elo de ligação claro e inequívoco entre o Fundo do Ultramar, a exportação de armas e a morte do primeiro-ministro e o ministro da Defesa.
A falta de coerência entre os testemunhos dos alegados autores do atentado
Quase 37 anos e dez comissões parlamentares de inquérito depois continua sem se perceber o que aconteceu a 4 de dezembro de 1980. De acordo com o relatório preliminar, “não foi possível retirar dos depoimentos dos confessos perpetradores do atentado de Camarate, designadamente Fernando Farinha Simões, José Esteves e Carlos Miranda qualquer elemento coerente, inequívoco e irrefutável que permita um melhor esclarecimento”, do atentado que vitimou Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa, o chefe de gabinete do primeiro-ministro, António Patrício Gouveia, assim como os dois pilotos do avião.
in: JN e Observador