Lar escasso lar
A nossa aclamada Constituição da República Portuguesa, pelo 70º artigo, protege a juventude com diretivas extremamente claras e amplas. Esta dita que, e passo a citar o primeiro ponto, “os jovens gozam de proteção especial para efetivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente: no ensino, na formação profissional e na cultura; no acesso ao primeiro emprego, no trabalho e na segurança social; no acesso à habitação; na educação física e no desporto; no aproveitamento dos tempos livres.”
A verdade é que, na prática, e por causa do sistema socioeconómico em que nos inserimos, não conseguimos disfrutar, em pleno, desta dita “proteção especial”. Coexistimos num mundo onde ainda somos confrontados com a barreira das propinas; somos confrontados com um mercado de trabalho altamente competitivo onde a experiência laboral é sempre um requisito sem existir espaço e margem de manobra para a obter; onde jovens adultos vêem-se obrigados a morar com os pais mais tempo do que desejam face às rendas extremamente altas, completamente desproporcionais ao nosso rendimento médio; e onde ter tempo livre é um privilégio no sistema capitalista. Em concordância com os censos de 2011, conclui-se que os jovens portugueses, no plano da inserção profissional, foram bastante vulneráveis às mutações económicas e sociais que ocorreram em Portugal nos últimos 30 anos. De facto, as camadas juvenis têm-se confrontado cada vez mais, nos últimos anos, com o prolongamento da sua situação de dependência da família de origem, vendo-se simultaneamente complexificada e retardada a sua inserção estável e duradoura na vida ativa.
A independência financeira dos novos jovens adultos parece, neste momento, nada mais que uma miragem. O aumento do custo do nível de vida, não acompanhado por um aumento dos salários, numa era extremamente precária e volátil faz com que a camada jovem não tenha os meios para atingir a sua liberdade e, acima de tudo, os seus direitos.
Direitos estes que são retirados pelo grande capital.
Vivemos num mundo onde os lucros de uma parte ínfima da população são mais importantes que a manutenção da vida de toda uma sociedade.
Tal afeta todas as esferas da nossa vida: a académica e, consequentemente, a profissional; a nossa vida social (a que todos temos direito e nunca poderá ser um luxo); e a nossa relação connosco mesmos (stress, ansiedade, falta de auto-estima, etc). Dados corroboram tal. Em 2022 foram colocados 49 806 alunos na primeira fase do Ensino Superior, 11,6 % não se matricularam, percentagem superior a anos anteriores. Tal espelha as dificuldades dos jovens, principalmente, por causa da procura de habitação – este caótico e alarmante “desequilíbrio de mercado”.
As residências públicas não dão resposta ao número de estudantes – um estudo da consultora imobiliária Cushman & Wakefield (C&W) estima que faltem 20 mil camas só para responder às necessidades da comunidade universitária, só nas zonas de Lisboa e Porto. Tal obriga grande parte dos estudantes a recorrer ao mercado privado tendo de lidar na forma mais direta possível com a fragilidade habitacional – quartos partilhados, casas degradadas, falta de condições higiénicas, entre outros – estes acumulam todas estas debilidades na hora de assinar o seu contrato na esperança que estas traduzam-se numa redução significativa de números na hora de pagar a renda.
Dados do Observatório do Alojamento Estudantil do mês de setembro mostram que 294€ é o preço médio de um quarto em Portugal (cerca de 39,7% do salário mínimo português) e em zonas como Lisboa e Porto um quarto pode chegar a custar 595€ e 609€, respetivamente. O mesmo relatório aponta que, desde o início do ano, há uma variação de 7,7 pontos percentuais do preço médio.
A tal podem me responder: e as bolsas de estudo da DGES (Direção Geral de Ensino Superior)? Quem é efetivamente beneficiário das bolsas de estudo da DGES sabe o processo penoso que tal implica. A demora na decisão (que raramente vem antes do início do ano letivo não dando certezas aos alunos levando estes a, no pior dos casos, não submeterem a sua candidatura ao ensino superior), a inadequação dos valores atribuídos ao nível de vida do seio familiar dos estudantes, a dificuldade burocrática e, particularmente, a sua insuficiência mostram que as bolsas não são a solução para os problemas que enfrentamos. Vejamos: quem recebe o valor mínimo da bolsa só tem capacidade para pagar as propinas (69,7€) sobrando 17,4€ para o mês todo (valor que não cobre, sequer, um passe de transportes públicos). Mesmo quem recebe o valor máximo da bolsa não vê a sua vida folgada de preocupações. Entre o pagamento da renda, propinas, passe dos transportes, alimentação, material de estudo, água, luz, energia, internet e telecomunicações a bolsa já expirou e o resto fica a seu encargo. Ora, podemos facilmente concluir que não termos estas condições básicas, a priori, leva a um esquecimento institucional das verdadeiras adversidades de um jovem estudante.
Saímos da esfera académica e observamos que tal não é um problema de nicho, extrapolando ainda mais a gravidade deste problema. Na campanha “Pobre Povo” lançado pela EAPN Portugal – Rede Europeia Anti-Pobreza – por várias ruas portuguesas lemos testemunhos como “Por causa das rendas vivo a 35km do trabalho. Saio às 5h de casa e chego às 22h.”. Outra voz da precariedade afirma: “Tivemos que entregar a casa. Daqui a um mês vamos para a rua viver, com os miúdos”. Tal não é alarmante o suficiente? O que nos pode convencer, perante relatos tão reais e dolorosos, que uns merecem o monopólio imobiliário com vista a ter mais uns milhões na conta e que outros valem 700€, o limiar da pobreza e a precariedade.
Se os meios constitucionais não nos prometeram o devido devemos ser vocais sobre tal e mobilizarmo-nos. Esta luta é de todos e a rua, a escola, o nosso poder de voto, a nossa capacidade de associação são a arena e o palco da mesma.
Texto de: Jéssica Pereira
Artigo publicado em parceria com a Associação de Debates Académicos da Universidade do Minho