Abdicação Unânime do País
O final do século XIX português fica escrito pesadamente nas páginas da nossa História enquanto povo e nação, como um período de desencanto, angústia e desilusão com o estado avançado de degradação dos destinos deste país.
Os círculos intelectuais e culturais, nomeadamente da ínclita “Geração de 70”, desdenham o resultado final de um regime monárquico em estado decadente, economicamente e social atrasado face à Europa Central, esquecido na orla periférica ocidental do continente. Um país ainda sufocado pelo peso das instituições do Antigo Regime, como a Igreja Católica ou pelos resquícios de uma aristocracia manifestamente ignorante.
Guerra Junqueiro, na sua obra “Pátria”, explora acidamente este sentimento nacional, falando da “abdicação unânime do país”. O ano era 1896 mas mais de um século depois algumas passagens desse livro parecem particularmente certeiras para a descrição do regime em quem atualmente vivemos, herança republicana, democrática e liberal da Revolução de 1974-75.
Na era do “rotativismo”, em que ao nível da política partidária, o país alternava instavelmente entre os executivos do Partido Regenerador (centro-direita) e do Partido Progressista (centro-esquerda), Junqueiro descreve as forças políticas dominantes como “dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.”. A sagaz crítica é feita no século XIX a dois partidos hoje extintos, mas encontramos de tal forma as inevitáveis semelhanças com a alternância política do Partido Socialista e do Partido Social Democrata que gostaria de a empregar para descrever a realidade atual.
No atual regime, o poder, nas suas diversas esferas, está concentrado no dito Bloco Central – duas estruturas partidárias que a nível nacional cooptam desde 1975 a grande maioria do eleitorado. Entre maiores ou menores críticas que se possam fazer aos dirigentes ou políticas aplicadas ou defendidas por um ou outro partido, na sua generalidade, falamos de duas forças semelhantes, coexistindo proximamente no centro político, entre um Partido que colocou o socialismo na gaveta e outro que cedo abandonou a social-democracia, navegando numa deriva ideológica mais próxima das correntes neoliberais.
A eles se deve a incapacidade de fazer face aos problemas estruturais do país, que parece resignadamente fadado a um fracasso trágico. Incapazes de seguir uma matriz ideológica coerente ou uma agenda transformadora, limitam-se a ser mecanismos para indivíduos mais
ou menos ambiciosos, mais ou menos competentes ou mais ou menos intelectualmente despertos, alcançarem um lugar de destaque na disputa virtual do poder. São responsáveis pela criação de uma elite tecnocrática e burocrata, que alheia aos reais problemas da
população, não hesita em ceder ao nepotismo, ao compadrio, ao amiguismo, ao eticamente reprovável, à corrupção, para benefício exclusivo de si mesma.
No entanto, apesar das derivações político-ideológicas que cada um destes partidos terá feito nas últimas cinco décadas, tais problemas são inerentes à sua própria natureza. São forças imobilistas, comprometidas com a elite económico-financeira que, alapada ao poder político, inibe as possibilidades de uma política de soberania popular, empenhada no avanço de direitos da população trabalhadora, a vítima inevitável do fracasso de cada uma das páginas da nossa História. Com o poder económico por ela sequestrado, seguimos enquanto país brutalmente desigual, na sua generalidade empobrecido, com uma classe explorada e impedida de viver plenamente, refém da nossa própria condição periférica e subalterna aos interesses de potências externas, como os baluartes civilizacionais dos Estados Unidos da América e da União Europeia.
Guerra Junqueiro fala-nos antecipadamente também desta elite, quando nos descreve “uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo”.
A espuma dos dias, como os recentes escândalos do executivo de António Costa, ocupa a agenda mediática – abre telejornais, é capa de tablóide, merece horas de comentário televisivo em canais noticiosos de baixa categoria. Perscruta-se a espuma, mas ignora-se que
ela é apenas sintoma de um mar maior, da realidade estrutural do regime e dos dois maiores partidos que o controlam. Perdendo-nos nas falhas diárias do sistema, esquecemo-nos que ele está desenhado para falhar.
A bolha mediática especula, analisa, pressupõe, sempre na medida dos interesses da elite que a controla economicamente, alimentando o interesse na escaramuça política com o objetivo mal disfarçado da audiência. Na “sociedade do espetáculo” que Guy Debord nos fala, tudo é mercantilizável, tudo serve para continuar a produzir aparato, a “droga para escravos”, a realidade é monetizada e a população é impelida ao seu consumo.
No entanto, os interesses da bolha política, mediática e económica, pseudo intelectualizada mas profundamente rasteira, passam ao lado das necessidades da população, que preferiria o foco nas reais problemáticas do quotidiano, como a degradação do salário real e do poder de compra, a brutal crise habitacional, o desemprego e a deterioração de condições de trabalho.
A dramatização da vida pública alicia muito mais que a discussão sobre os problemas estruturais do regime, é certo, mas diz muito menos sobre os caminhos para melhorar a vida das e dos portugueses.
A oposição, no centro-direita, perde-se em críticas em catadupa, na ânsia necrófaga de regressar ao poder, sem conseguir distinguir-se dos rivais políticos, visto que, como vimos, são produto da mesma matéria indistinguível. A extrema-direita alimenta-se precisamente dos anseios de uma população saturada, distante da bolha e da elite, que, cansada de aguardar por uma melhoria das condições de vida, ruma iletradamente para paragens políticas menos desejáveis, ignorando o vazio de soluções apresentado e a amálgama de políticas e discursos de ódio por lá vociferados.
Não vivemos no Portugal oitocentista, mas padecemos de males semelhantes. Desde lá passamos por um regime republicano instável e falhado e uma brutal ditadura que durou, nas suas diversas facetas, mais de quarenta anos. O denominador comum entre estas fases é o
descaso que existe pelo povo, enquanto classe, pelas suas pretensões e necessidades.
Saibamos canalizar menos a nossa indignação seletiva para os fait divers do pútrido combate político quotidiano e mais para a construção de uma alternativa que recentre o foco da representação política na vontade popular, que combata estruturalmente a pobreza, a exploração económica e a desigualdade, que construa um regime e um sistema assente num ideal de equidade e justiça – social, económica, climática. Nessa ânsia procuremos não abdicar de um futuro para o país e para quem nele mora e trabalha.
Texto: Afonso Silva
Artigo publicado em parceria com a Associação de Debates Académicos da Universidade do Minho