FIM DO SNS: a tragédia do conto de fadas
A 15 de setembro de 1979 nasce o serviço nacional de saúde para assegurar o direito à proteção da saúde, nos termos da Constituição. Este acesso é garantido a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social; bem como aos
estrangeiros, em regime de reciprocidade, apátridas e refugiados políticos. Este aparelho é constituído por todos os serviços e entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde. Ao longo dos últimos 40 anos, as atualizações dos decretos-lei de forma a potencializar esta estrutura promoveram, segundo as perspetivas políticas, novas formas de combater a desigualdade de acesso, a qualidade, e as questões de investimentos, sendo esta a tríada de problemas que se perpetuam intemporalmente.
Se para alguns o SNS, apesar de todos os problemas estruturais, se define como um pilar essencial para a democracia portuguesa – assegurar cuidados de saúde gratuitos e universais – a pandemia do vírus SARS-CoV-2 veio acentuar a necessidade de reivindicar pelo investimento público neste setor. Quando pensávamos que seria a pandemia a salvar o SNS, pois sabíamos que os privados exigiam por cuidados de saúde valores incomportáveis para a maioria dos cidadãos portugueses, tínhamos a certeza que, se não fosse o serviço público, o número de mortes, as sequelas, e os traumas desta tragédia social seriam inimagináveis. A saúde não é uma mercadoria do grande capital, ainda que pelo tratamento que lhe é feita, pareça!
Mas afinal, já que o SNS está doente, vamos perceber os sintomas da verdadeira transversal doença do séc XXI: a centralização do poder na burguesia com uma dose de alienação social…
Primeiramente, o número de utentes sem médico/a cresceu fortemente: de 730 mil em 2019 aumentou para 835 mil em 2020 e disparou para mais de um milhão e 81 mil em novembro de 2021. Atualmente, quase 2 milhões de pessoas que não tem médico de família. A prevenção e promoção da saúde falham ativamente, de forma que sejam as urgências as centralizadoras de situações de saúde-doença, com um número de utentes que espera pelo menos seis horas, que se estima ser 23 %. Os claros problemas estruturais intersetam com a necessidade de reformular modelos organizacionais de resposta à saúde das populações. Assim, e perante a nova direção executiva, há uma intenção de extinguir as Administrações Regionais de Saúde (ARS) apostando em Unidades Locais de Saúde (ULS) – ainda se aguardam os resultados desta mudança de gestão, enquanto reparamos (ou sentimos) todas as outras adversidades atuais. Ainda
neste domínio das urgências não podemos ter amnésia perante o fecho das urgências de ginecologia e obstetrícia ou pediatria dos últimos tempos, situações que já revelaram as suas trágicas consequências – voltaremos a enfatizar este ponto em breve, leitor (a).
No que se refere à saúde mental, as lacunas são infindáveis. O SNS tem apenas 1.000 psicólogos dos 26.000 inscritos na Ordem. A quantidade de pessoas a ser acompanhadas no domínio psicológico, incluindo eu, não têm respostas públicas. Como é que
queremos uma sociedade baseada num bem-estar psicológico quando nem os nossos governantes priorizam esta necessidade?
Relevante referir a falta de médicos/as ser constante, em 2020 e 2021 o SNS terminou cada ano com menos médicos/as do que no início (menos quase mil em cada ano). Este ano 70 % das vagas para contratar médicos de família ficaram por preencher. O governo irá (voltar) a contratar centenas de médicos estrangeiros para colmatar a falta de médicos. Desta forma, a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) irá continuar as greves que perduram esta semana face ao “adiar constante das soluções”, apesar de agendadas as reuniões negociais com o Ministério da Saúde para dias 7 e 11 de julho.
Caro leitor (a), é inadmissível que a carreira dos profissionais de saúde esteja doente, que os cuidados estejam progressivamente a ser entregues aos serviços privados pela normalização do subfinanciamento do SNS, nos últimos anos.
O mesmo acontece com outros profissionais de saúde como enfermeiros (as), técnicos (as) auxiliares de saúde, e tantos outros (as), que se têm manifestado de várias formas nos últimos anos, apresentando salários e (des) valorização de carreiras descabidos e desadequados à dignidade humana pelo esforço, o risco, e a resistência destas profissões. Sabe-se que as condições de trabalho são escassas, nomeadamente equipamentos necessários à prestação de cuidados, a questão formativa, e horária, entre outros fatores que desmotivam os tais “heróis”, que em tempos foram aclamados com um bater de palmas nas varandas pelo país dentro. Problemas e performances que, como já percebemos, afastam estes trabalhadores do setor público. Permitam-me salvaguardar uma luta conseguida, a vitória da resolução do problema da ausência de uma carreira para os assistentes operacionais – há dias em que a esperança tem de ser o motor da
resistência.
Como futura profissional de saúde, como cidadã com uma saúde fragilizada, e como familiar e amiga de muitos utentes aos quais o SNS salvou a vida, o meu receio pelo futuro deste entranha-me como um arrepio que imobiliza a minha capacidade de imaginar o fim deste sistema. O apoio que partidos de direita e extrema-direita têm tido para acabar com este direito, optando por continuar a proteger a elite tem vindo a ser recorrente, incentivando à desistência desta luta, apelando a um conjunto de mecanismos que, a longo prazo, condenarão o SNS à morte – como as relações com o setor privado. Há focos claros que devem ser priorizados: atribuir médico de família a todas as pessoas, aumentar a resposta no território diminuindo desigualdades e aprimorando a qualidade do serviço, respeitar as carreiras dos profissionais de saúde valorizando-as, salientando sempre um SNS centrado no utente.
Em 2023 foi criado um movimento designado por movimento + SNS que exige o reforço de recursos humanos e investimento no Serviço Nacional de Saúde, apresentando um manifesto que conta com mais de 3000 subscrições, e que realizou a sua primeira mobilização na rua a 3 de junho. Um movimento do povo para o povo que pretende “políticas públicas que assegurem o direito de todos à saúde”. Na abertura deste manifesto podemos encontrar a frase “O SNS é um património moral irrenunciável da nossa democracia”, e este tem de ser o mote do discurso público, da força do povo pelo bem mais precioso, a saúde!
Por fim, o SNS Valorizado apresenta tudo aquilo que um conto de fadas constitui: um mundo de liberdade no qual sabemos que, perante o mal/ o obstáculo, os cenários de salvamento estão ao nosso dispor, sem nos exigirem nada por isso.
A luta continua, caros leitores!
TEXTO DE: Mariana Sousa
Artigo publicado em parceria com a Associação de Debates Académicos da Universidade do Minho