Os votos não valem todos o mesmo
No último domingo, 5.092.424 eleitores portugueses quiseram escolher os deputados que os irão representar nos próximos quatro anos. A escolha é dada a todos os eleitores, mas na hora de contar as “cruzes”, nem todos os votos valem o mesmo em todos os círculos. Dos mais de cinco milhões de eleitores que votaram para estas legislativas, na hora de apurar os mandatos para o Parlamento, ficaram por aproveitar 680.748 votos válidos.
Em causa está o sistema eleitoral português de reconversão de votos em assentos na Assembleia da República. Luís Humberto Teixeira, tradutor, cabeça de lista do PAN por Évora e com formação em Política Comparada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, olhou para os “votos ignorados” ou “desperdiçados” e mostra como o fenómeno tem aumentado nos últimos anos e tem tendência de beneficiar os maiores partidos. Nestas eleições, o maior beneficiado foi o Partido Socialista.
“Os votos ignorados não atingem todos os partidos da mesma maneira”, contextualiza Luís Humberto Teixeira em conversa com o PÚBLICO. Como explica a Comissão Nacional de Eleições, os votos são convertidos em assentos parlamentares, que são definidos, em cada círculo, em função da população aí recenseada. Esta conversão faz-se com base no método d’Hondt, em que os resultados de cada partido são divididos pelos divisores 1, 2, 3, 4 …, sucessivamente. Os mandatos disponíveis são atribuídos aos quocientes mais elevados que foram obtidos por cada partido. O processo procura garantir a proporcionalidade, mas tende a favorecer os partidos maiores, com mais votos, que acabam por ficar com uma representação ligeiramente superior em relação aos outros. O PS, que elegeu deputados em todos os círculos apurados até agora (faltam os círculos da Europa e Fora da Europa), foi o partido que menos votos desperdiçou.
Do lado dos partidos mais prejudicados com a distribuição de mandatos ficaram o CDS-PP, a coligação CDU e o Bloco de Esquerda. Votos (quase todos) escrutinados e contas feitas, cada um destes partidos viu desaproveitados mais de 80 mil votos. No caso do CDS, que elegeu cinco deputados, foram 97.593 votos. Já a CDU não capitalizou 91.936 votos. O Bloco de Esquerda viu “ignorados” 80.599 votos. Em termos percentuais, “quase metade da votação no CDS não foi convertida em mandatos”, nota Luís Humberto Teixeira.
Em termos percentuais, olhando para o número total de votos de cada partido, o Chega (66,81%), o Livre (59,02%) e a Iniciativa Liberal (58,55%) são as forças partidárias com percentagem mais elevada de votos não convertidos em mandatos.
Os votos não valem todos o mesmo
O fenómeno não é novidade, mas “tem vindo a aumentar paulatinamente desde 2009”. De facto, é preciso recuar até 1975, aquando das eleições para a Assembleia Constituinte, para encontrar um número de “votos ignorados” tão elevado nas eleições legislativas. À data, foram registados 579.804 votos que não se traduziram em mandatos.
Uma das explicações para este aumento assenta no recenseamento automático dos eleitores emigrados, conta Luís Humberto Teixeira. “Os eleitores que estavam inscritos em distritos mais pequenos ou do interior estavam a fazer aumentar o número de votos atribuídos a essas zonas.” Com a actualização dos cadernos eleitorais, esses votos deixaram de contar, “o que aumentou a desigualdade de voto dos círculos eleitorais” devido à dimensão variável de cada círculo eleitoral. Enquanto Lisboa elege 48 deputados, Beja elege apenas três. E isso deixa votos fora das contas. Quanto menos deputados elege um círculo, menos perfeita é a proporcionalidade na distribuição dos seus mandatos.
Se olharmos para os distritos mais prejudicados, são os alentejanos que lideram percentualmente. Portalegre teve 53,28% dos votos ignorados (o que corresponde a mais de 23 mil votos válidos), Évora teve 40,60% e Beja 33,96%.
Por exemplo, “no Alentejo o PSD não elegeu nenhum deputado e o PS teve, nos três distritos, sempre 40% dos votos”. “Ainda assim, é o PS que fica com seis deputados no Alentejo”, o que, na opinião de Luís Humberto Teixeira “é exagerado”.
Do extremo oposto, os cinco círculos com menor percentagem de votos ignorados são Lisboa (4,35%), Porto (6,83%), Setúbal (11,55%), Aveiro (12,25%) e Braga (12,29%) – os distritos que mais deputados elegem.
Em Lisboa, o PS precisou de apenas 36,74% dos votos para eleger 20 deputados. Em Bragança, o PSD foi o partido mais votado, com 40,78% dos votos, mas a conversão de mandatos resultou na eleição de apenas dois deputados. “Enquanto 11.158 votos bastaram para eleger um deputado nos Açores, em Lisboa foram necessários 20.234”, exemplifica o especialista. Com excepção de Lisboa ou Porto, “os 18.443 votos da CDU em Braga teriam bastado para eleger um deputado em qualquer outro círculo”. Ou que a Aliança teria conseguido eleger em nove círculos eleitorais com os mesmos votos que conseguiu em Lisboa.
“Enquanto estive em campanha percebi que nem todos percebem como funciona o sistema eleitoral, mas outros tantos, apesar de saberem que aqueles que escolhem não vão ser eleitos, decidem manter o seu voto por uma questão de coerência com os valores e propostas nas quais acreditam”, conta Luís Humberto Teixeira.
Consciente ou não, a diminuição dos votos “desaproveitados” deverá ser um tema dos próximos anos. Tema presente nos debates que antecederam a campanha eleitoral, o sistema político deverá ser discutido na próxima legislatura, antevê. Para o especialista, a solução mais consensual entre os partidos grandes e os partidos com menor representação, seria a redução dos círculos eleitorais, diminuindo o desperdício de votos. A criação de um círculo nacional seria outra forma de evitar o desperdício de votos.
IN:Público