Uma cura para extremos
Acredito não haver algum conselho mais livremente dado, e mais facilmente incompreendido, do que “não devemos repetir os erros da história”. Ouve-se em todo lado, aplica-se em todo o caso, usualmente sem a mínima minuciosidade e destreza que qualquer historiador de qualidade requereria. À medida em que partidos extremistas ocupam governos de leste à oeste, não há amigo mais fiel das campanhas partidárias. Mas a história nem sempre é o que pensamos ser.
Exposição A. O partido fascista de “Il Duce” primeiro alcançou o status de membro de uma coligação governante em 1921, após eleições convocadas como resposta à turbulência política de 1920, entre ocupações e lockouts nos centros industriais do Norte de Itália, e o recrutamento de milícias privadas por parte dos industrialistas e latifundiários. Mussolini, apesar de eleito, abandonou a coligação, reconhecendo que o seu apelo residia na apresentação do fascismo como alternativa ao sistema parlamentar. Desta posição, pode organizar a sua oposição à esquerda e ao Governo, recorrendo, por muitas vezes, ao terrorismo doméstico. Ao anúncio, em 1922, de greves e protestos antifascistas por parte dos socialistas, Mussolini responde com uma ameaça, de que ele próprio acabaria com os protestos caso o Governo não o fizesse, procurando criar, assim, a imagem de defensor da ordem e da lei. Quando o Governo rui sob a instabilidade da situação política, o Rei Victor Emmanuel III nomeia Mussolini como Primeiro-Ministro. O líder fascista, assim, alcançou o poder por vias constitucionais.
Exposição B. A subida ao poder de Hitler seguiu moldes semelhantes. Apesar da impassível oposição do Partido Nazi à democracia parlamentar, ao sistema de Versailles, assim como ao socialismo e comunismo, o partido não era único na República de Weimar. Também o Partido Popular Nacional Alemão foi um partido protofascista. Também este atacou o sistema de Versailles e o Marxismo, e, tal como o partido de Hitler, clamava por uma política externa agressiva. Mas quando a Grande Depressão exibiu o então Governo como indefeso e confuso, Hitler acabou por herdar os apoiantes conservadores de Hindenburg precisamente por não fazer parte da catástrofe governativa. O nacionalismo e antissocialismo sociopata de Hitler só conquistou a base financeira dos industrialistas e latifundiários após esses perderem a fé na capacidade dos partidos tradicionais de manter a ordem contra uma revolução à esquerda. Em 1928, o Partido Nazi alcançou somente 2,6% dos votos. Em 1932, já possuía 37,3%.
Muitos partidos gostariam de esquecer o facto de que, ao menos inicialmente, partidos fascistas foram capazes de alcançar o poder por vias legítimas e constitucionais, apresentando-se como alternativas à um sistema ineficaz e indefeso. Nós próprios gostamos de acreditar que partidos extremistas não podem senão construir a sua base através de manipulações, ou numa incapacidade de pessoas, racionais e humanas como nós, verem nesses partidos uma alternativa legítima dentro de um sistema democrático. Somos levados a crer na ignorância e falibilidade dos outros, enquanto promovemos a nossa própria santidade e inteligência. A inerente malícia desses partidos é vista como argumento para o seu isolamento máximo: ao seu mínimo toque no poder, todo o sistema ruirá. Cabe a nós, iluminados, ser a alternativa.
Mas essa lógica é falha em si mesma. Se o sucesso eleitoral é o único obstáculo no caminho para as chaves douradas do poder ilimitado, então a única diferença a ser discernida entre partidos tradicionais e extremistas é a maior propensão destes últimos para usar esse poder. Basta então que um partido extremista esconda a sua verdadeira face por detrás da máscara da legalidade e do bem comum até alcançar um bom resultado, sabendo que logo após poderá governar desimpedido. Entretanto, esse é precisamente o argumento dos partidos extremistas, nomeadamente, de que são os partidos tradicionais a fazerem política por detrás de uma cortina de fumaça. Quando cada lado aponta o dedo ao outro, os eleitores tornam-se incapazes de distinguir entre a honestidade e a perfídia, o bem e o mal, e são chamados simplesmente a confiar na bondade no coração de certos políticos e na retitude moral de certas ideias, em comparação com os outros, menos imaculados, mais corruptos.
Torna-se fácil então ver o porquê de a maioria dos partidos se encontrar perdida na procura de soluções contra o extremismo. A ironia é quase tangível: os mesmos indivíduos que se veem a votar em certos partidos devido à suspeita de que os políticos tradicionais só beneficiam a si próprios, são agora chamados por esses mesmos políticos a votar, sob a promessa de que eles sabem o que é melhor, e somente eles usarão o poder para o bem do povo. Se todo o enredo parece satírico, é porque assim o é. Os partidos tradicionais, todos na fila para a luta contra o fascismo, estão, na sua maioria, apenas a lutar contra o seu próprio declínio eleitoral. Eles são capazes somente de promover a si próprios como solução para o extremismo – nunca os outros, nunca um sistema. Inerentemente, talvez até inconscientemente, alimentam a noção de que toda a política é egotística e ideológica, baseada mais em fé e paixão do que na racionalidade.
O problema com o fascismo, na verdade o problema com todos os regimes totalitários e opressivos, entretanto, não é tanto com como eles chegam ao poder, mas com o aquilo a que permitimos que o poder faça. Com a ideia de que certas liberdades, certos direitos fundamentais, são mais facilmente sacrificados do que outros. Ao promovermos uma solução baseada na restrição discriminada do poder de certos partidos em detrimento de outros, acabamos por cair no mesmo problema, e a fornecer a esses partidos as chaves da vitória.
O ciclo vicioso da luta pelo poder só pode ser quebrado, de forma credível, por uma renúncia a esse mesmo poder. Muitos partidos, muitos indivíduos, rejeitam o fascismo não pelo seu uso obsceno do poder, mas pelo facto de esse poder não ser utilizado em nome de uma “causa correta”. Mas tal linha argumentativa embrenha-se num relativismo moral e político cuja solução só poderá ser alcançada através de uma completa uniformização artificial do substrato moral da sociedade, ou do entendimento de que, numa sociedade plural, a tolerância implica, necessariamente, um limite indiscriminado e fundamental ao poder social.
O erro da nossa história é acreditar que o poder e a força, e não os direitos e a autodisciplina, são os baluartes da liberdade. Mas o homem que carrega a espada não encontra a paz na morte dos seus inimigos. Enquanto a sombra do extremismo emerge mais uma vez sobre o mundo em todas as suas odiosas formas, devemos ter o cuidado de não puxar esses fios do poder, atando-nos a um nó de desconfiança e inveja, do qual poderemos nunca escapar. Devemos zelar, não pela paralisia e timidez frente aos desafios do totalitarismo, mas por aquela paciência e moderação que entende que as melhores mudanças custam tempo, e não vidas.
Texto de: Bernardo Almeida
Artigo publicado em parceria com a Associação de Debates Académicos da Universidade do Minho