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Reaccionários académicos e (des)alternativas ao sistema

            Sempre houve um forte debate em torno dos prós e contras da democracia, se ter políticos eleitos a nos representar é, afinal, a melhor solução – o próprio Platão apresenta esta discussão, através da visão socrática, n’A República. Uma alternativa que tem vindo a ser proposta, e que ganhou mais apoiantes devido à recente pandemia global, é que algumas, se não todas, decisões políticas devem ser tomadas por um painel de peritos.

 

            A primeira coisa que temos de averiguar é como iria ser escolhido este painel, e como funcionaria – irão substituir completamente os políticos eleitos, ou serão somente um novo ramo do governo? Com isto em mente, podemos delinear dois cenários.

 
 

            O primeiro, e mais radical, é aquele onde estes peritos são eleitos pelos seus pares académicos o que por si só coloca questões relativamente à (falta de) meritocracia deste modelo, pois peritos que não se alinhem nas suas visões com as da maioria terão mais dificuldades em ser eleitos. Isto iria prejudicar desproporcionalmente pares académicos de comunidades marginalizadas, mulheres, ou qualquer pessoa que levante questões sobre as desigualdades crónicas da nossa estrutura socioeconómica – quem pertence a estas comunidades enfrenta fortes entraves à entrada no mundo académico, seja por pressões exógenas, seja pelas assimetrias financeiras, seja por puro preconceito. Alguém que se demonstre abertamente contra a natureza exploratória do ocidente pós-colonial e procure desmantelar relações de dependência seria mais facilmente silenciado, por exemplo.  Começamos a ver alguns problemas iniciais com este modelo.

            Primeiro, isto aliena completamente a população das decisões tomadas – afinal, estes peritos têm objetivos que, frequentemente, são diametralmente opostos à do povo, ou pelo menos dos que mais necessitam de mais proteção/apoio, como foi falado previamente. Pode ser argumentado que isto poderá ser melhor para o bem-estar geral, porque o cidadão comum não tem um conhecimento tão nuançado nos “problemas do mundo atual” – realmente o que mais falta são velhos académicos a perpetuar uma gramática cisheteronormativa e falogocêntrica nos centros decisórios. Não só, mas estes peritos são falíveis, ciência não é uma constante – o que a comunidade científica toma como certo hoje pode vir a ser provado errado. Mas como a população geral não pode votar para retirar estes peritos do poder, ficam à mercê da sua boa-fé, e disposição a reconhecer os próprios erros. A democracia consegue proteger-nos da ossificação do status quo. Para além do mais, relacionado com este último ponto, surge o facto de nem sempre haver um consenso entre peritos; pegando em economia, por exemplo: qual é o critério que leva à eleição de peritos neste campo, já que há tantas visões conflituosas neste campo? Como cooperarão? Que sistema de responsabilização existe?

 
 

            O segundo cenário, que ajuda a evitar alguns problemas iniciais da tecnocracia (como o facto de a população não ter voz, opacidade aquando das eleições dos peritos), é um onde tecnocratas estão em simbiose com os políticos eleitos. Eles serão classificados pelos seus pares, mas serão os políticos eleitos a selecioná-los, havendo igual representação em ambos os ramos do governo (ou seja, caso um partido eleja 30% dos deputados do parlamento, também irá selecionar 30% dos peritos). Enquanto isto limita, e talvez até elimine, alguns problemas da tecnocracia, outros surgem.

            Primeiro, se são escolhidos por cada partido político, a sua perícia é posta em causa – alguns partidos de extrema-direita poderiam, hipoteticamente, escolher alguém que defenda veemente políticas transfóbicas, utilizando pseudociência, fabricando dados ou apostando em sensacionalismo para tal efeito. Isto demonstra quão ambíguo é o processo, quão plausível é de acontecer (o exemplo da transfobia é algo que já acontece constantemente) e como pesquisas científicas iriam ser cada vez mais condicionadas: afinal, o campo da investigação depende fortemente de apoios financeiros, a sociedade disciplinar já está fortalecida que chegue sem tal mecanismo. Chomsky descreve-nos como mecanismos semelhantes operam em relação aos meios de comunicação e a filtragem de fontes, um dos grandes problemas da democracia atual, que seria agravado neste modelo.  Isto faria com que certas crenças com impactos sérios sobre a segurança e bem-estar de milhões de pessoas ganhassem credibilidade; se alguém com décadas de experiência no ramo acredita nisto, porque irei eu questionar? Um fenómeno semelhante aconteceu no início do processo de inoculação contra a COVID-19. Robert Malone, um médico norte-americano, ganhou notoriedade por promover desinformação sobre a vacina, sugerindo métodos “alternativos” para combater a doença, como antiparasitários. As suas opiniões tornaram-se virais, com palco em vários podcasts, tendo servido como base para muito do movimento reacionário anti vacina.

 

            Finalmente, se as suas decisões estão sempre em concordância com linhas partidárias, qual é o ponto de ter estes peritos no governo para começar? Há um aumento significativo na burocracia; o estado irá ter despesas acrescidas; nunca irão defender algo que contradiga o partido que os elegeu, fazendo com que a sua posição não afete o status quo. Simplesmente teríamos um labirinto kafkaesco, agravando a situação pós-moderna que Mark Fisher nos descreve.

Apesar disto, temos de ver alguns benefícios das tecnocracias. Afinal, algumas decisões (como questões relativamente ao aborto, suicídio, imigração) poderiam ser afetadas se quem votasse nelas estivesse mal informado ou tivesse preconceitos já estabelecidos. No entanto, os contras são muito mais impactantes do que os prós, especialmente quando temos em consideração o facto de que no status quo políticos já tomam decisões baseadas no consenso de peritos dessa área.

 

Portanto, qual é o problema das tecnocracias? Ao longo deste ensaio apresentei dois cenários nos quais um painel de peritos iria tomar as rédeas das decisões políticas de um país, analisando as consequências mais prováveis desta mudança na nossa maneira de nos governar, e pesando os prós e contras. A conclusão que apresentei é a de que uma tecnocracia é como uma Hidra – por cada problema que conseguimos resolver, criamos dois novos. Este estilo de governo não representa os seus cidadãos, aliena-os completamente do processo legislativo, é passível de estagnação completa, a vaga noção de meritocracia existente tornar-se-ia ainda mais distante, é no mínimo opaca no que toca à escolha dos peritos, e enfrenta a falácia de que educação formal num certo campo académico é sinónimo de perícia em tudo o resto.

Texto: Rodrigo Vieira

 

Artigo publicado em parceria com a Associação de Debates Académicos da Universidade do Minho

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