A solução final de André Ventura: uma ditadura das pessoas de bem
Um dos meus maiores prazeres é a literatura. Preferencialmente sentado numa mesa de café, com um bom copo de vinho, ou um chá quente, em dias de vento. Sou favorável à leitura em sítios movimentados, por velho hábito que acolhi na universidade, onde uma parte substancial do estudo mais produtivo decorria na mesa das esplanadas apinhadas de colegas.
Esse foi, portanto, outro dos prazeres que a pandemia me roubou. Parcialmente.
Confinada a capacidade de ler ao meu apartamento, tenho feito por embrenhar-me em leituras mais densas, que requerem um ambiente mais sombrio. Foi assim que, no final do ano passado, dei por mim a abrir um ficheiro digital que me tinha sido enviado por um casal amigo, a morar nos Estados Unidos da América, de um livro chamado The Turner Diaries.
Antes de começar a leitura, sabia já que estaria prestes a ser confrontado com uma realidade dura. É que The Turner Diaries é descrito como a “bíblia” das comunidades neonazis que proliferam pelo mundo digital, e começam agora a imiscuir-se no quotidiano da vida real.
Não cumpre o propósito deste texto descrever de forma exaustiva esse livro. Antes pelo contrário. Cumpre dissuadir o leitor que pondere sequer pegar na obra. Tal como Mein Kampf, esta é uma obra que requer uma leitura crítica pesada e que não deverá ser acolhida de forma despreocupada. A narrativa explora a mente de um membro de uma organização de extrema direita, associada aos chamados ideais de supremacia branca, que, ao longo da história, vai destruir o sistema político vigente e criar uma nova ordem mundial, onde impera o medo e a arregimentação dos povos.
The Turner Diaries tornou-se num daqueles lemas evocados pelos grupos terroristas que vão surgindo, abertamente, um pouco por todo o mundo, com particular ênfase nos Estados Unidos da América. Escusado será mencionar o atentado terrorista que atingiu o Capitólio no passado dia 6 de janeiro, promovido por esses grupos e com a anuência do presidente do país.
Importa, todavia, comparar esse atentado com um que é descrito no livro. Chamam-lhe “o dia da corda”, porquanto corresponde a um evento onde os elementos da organização terrorista de extrema direita sublevam-se contra os que declaram como “traidores da raça”, acabando por enforcá-los nos postes de eletricidade das cidades americanas. Poderemos chamar-lhe de uma espécie de solução final.
Não será exagerado comparar esse “dia da corda” com o que esperavam os apoiantes de Donald Trump quando iniciaram a sua rebelião. Aliás, uma pesquisa rápida pelas redes sociais de alguns dos que lá estiveram presentes revela a difusão de citações de The Turner Diaries e alusões frequentes às cordas que desejam para enforcar os seus adversários.
O deplorável acontecimento na casa da democracia americana ocorria praticamente em simultâneo com o debate entre os candidatos presidenciais Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura. Enquanto eu assistia, através de vídeos nas redes sociais, a manifestantes com simbologia de extrema direita que vandalizavam a bandeira do seu país e o seu parlamento, na América, a minha televisão apresentava, em Portugal, um candidato que afirmava, perentoriamente, estar pronto para implantar uma ditadura, aquando da sua vitória.
André Ventura chamou-lhe uma ditadura dos portugueses de bem.
Talvez outra espécie de solução final.
Assim, será de ponderar uma comparação entre André Ventura, o partido que governa de força autoritária e as organizações da extrema direita americana?
Procurarei apresentar uma rápida sucessão de factos, que deixarei à consideração do leitor. Afinal de contas, este é um espaço de diálogo, que prevê abertura e crescimento, tanto pela parte do autor como se espera dos que o lerem.
A extrema direita mundial, e o seu crescimento, ao longo da primeira década do século XXI, deve muito à personalidade de Steve Bannon, que foi um dos ideólogos da campanha de Donald Trump, posteriormente membro da sua administração e, mais recentemente, arguido numa série de casos de polícia que não importam agora esmiuçar. Comparativamente, André Ventura apresenta-se lado a lado com Diogo Pacheco de Amorim, antigo terrorista de extrema direita, agora reabilitado como espécie de político e ideólogo do Chega.
Bannon foi, igualmente, fundador de um movimento político mundial de extremos, associado à supremacia branca e à destabilização do regime político vigente, que se chama, precisamente, O Movimento. Esse grupo, envolto em algum mistério, foi já alvo de uma investigação detalhada, pelo jornalista português João Barbosa, que a publicou nas redes sociais, e cujo link se apresenta, recomendando-se a leitura:
As ligações entre André Ventura e o Movimento são bastante conhecidas, e, em muitos casos, bem públicas. Para além de terem estado presentes em Fátima representantes do Movimento, no passado ano de 2019, onde estiveram alegadamente reunidos com elementos do partido Chega, o certo é que Marine Le Pen tornou-se um dos membros mais mediáticos do grupo e é, presentemente, a mais poderosa apoiante internacional da candidatura presidencial de Ventura. Também Trump convidou o líder da extrema direita portuguesa a participar na última convenção do partido republicano nos Estados Unidos, entre 24 e 27 de agosto de 2020.
Sobre as posições e as coerências do líder extremista, acerca de Trump e Le Pen, relembre-se o que, em 2017, André Ventura, então candidato pelo PSD, afirmou publicamente:
Perante esta teia de ligações, digna de uma teoria de conspiração, mas amplamente comprovadas factualmente, resta ponderar acerca das eventuais parecenças entre os eventos de The Turner Diaries e uma ditadura de “portugueses de bem”. Da mais liberal e populista direita portuguesa à mais utópica e comodista esquerda, existem demasiadas alternativas à candidatura de André Ventura. Urge repensar o caso português, antes que seja o nosso parlamento, e o povo que representa, a sofrerem com as cordas da extrema direita.