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“Algum dia, alguém irá recordar todos os nossos mortos”

Ânimo.

 

São já semanas, parecendo que não, de convívio direto com centenas de mortes diárias pela aberração da doença.

 
 

A temível doença.

São centenas de partidas, a roçar nos milhares, porque importa acrescentar todos os que morrem pelo entupimento do sistema de saúde nacional.

 
 

Contrariamente ao que os contrários espíritos pronunciam, nunca morreram tantas pessoas de forma continuada, e o problema não é a política do Sistema Nacional de Saúde.

O problema é que não existem pessoas suficientes, muito menos com capacidade física e psicológica suficiente, para tratar de tantas pessoas ao mesmo tempo.

 

Sempre se falou nesta possibilidade, desde o começo, mas decidimos todos ignorar, cada um à sua maneira.

Culpado, me confesso.

 

Já frequentei de forma relativamente regular os cafés cá do sítio. Por cansaço emocional com as medidas de confinamento.

Por hábito. Por preguiça. Por estupidez minha.

 

Isso não interessa agora para o assunto.

Aprendemos a viver com a morte diária.

E isso deixa-nos sequelas poderosas.

Inspirado pelo filme, The Dig, disponível no Netflix desde 29 de janeiro, aprendi a viver com a morte de uma forma diferente.

Sou arqueólogo de profissão, e o filme remete-nos para a arqueologia.

Acontece que a arqueologia tem uma profunda ligação humana com a morte. Cada passo que o arqueólogo dá em direção à descoberta corresponde a uma reconstituição de vida dos mortos que por ali terão passado. E o Passado deixa de ser um sentimento invisível porque, através da arqueologia, fala connosco.

Sentir a sua presença é como mergulhar numa máquina do tempo onde somos observador e observado, simultaneamente passado, presente e Futuro.

A inevitável leveza da morte torna-se menos pesada quando percebemos que somos todos parte de uma linha contínua de Humanidade. O nosso legado principal será o de sermos humanos. Tal como todas as gerações que vieram antes de nós, e todas as gerações que virão.

É esse o principal propósito da arqueologia, o de recordar ao ser humano que ser apenas humano não é um defeito, mas antes uma qualidade.

O número de caixões aumenta a cada dia que passa.

As pessoas não conseguem despedir-se dos seus mortos.

As lágrimas formam rios de desespero.

Mas lembrem-se, todos os que, como eu, por vezes sentem uma impotente sensação de finalidade: o Mundo não acaba aqui. Somos parte de uma linhagem de Humanidade que irá continuar.

E algum dia, alguém irá recordar todos os nossos mortos.

Alguém irá recordar que por aqui passamos, aqui vivemos e um dia fomos felizes.

Em frente seguiremos.

Juntos.

texto: Pedro Parreira

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