Cultura para todos ou para alguns?
O tópico de acessibilidade cultural já não é recente e as áreas centrais de discussão em torno desta temática foram também evoluindo para algo muito além de rampas ou casas de banho adaptadas. Contudo, numa altura em que uma cidade portuguesa será Capital Europeia da Cultura em 2027 e Braga, no âmbito da sua candidatura não sucedida para este reconhecimento, terá também oportunidade de consolidar o trabalho desenvolvido neste setor, a discussão em torno da cultura em Portugal continua a ser demasiado elitista.
Importa, antes de mais, definir o que efetivamente é cultura. Existem muitas definições para este conceito, mas é crucial não cairmos no erro de sermos demasiado restritivos. Como tal a definição que eu considero mais útil e correta é que cultura é algo conectado com ações e ideias de forma que os indivíduos possam aprender e partilhar. Cultura refere-se a todos os aspetos da vida, sendo estes físicos, mentais, sociais ou linguísticos. Refere-se áquilo que sentimos, aquilo que somos, às relações que temos com os outros e com as instituições.
Assim sendo, estranha-me o pressuposto, que parece quase dogmático, com o qual começam as discussões sobre o acesso à cultura de que as pessoas não têm interesse. Ora quando vemos festivais de música e concertos mediáticos com uma enorme barreira de custo esgotados ou a atingir números recorde, ou grandes números de adesão a plataformas de streaming e séries, já nem entrando pelo polémico tema do desporto ser ou não considerado cultura, vemos que existe efetivamente interesse por espetáculos culturais. Pode é não existir tanto interesse pela agenda cultural que os municípios promovem devido às desigualdades sistémicas do mundo capitalista, cuja solução vai muito além de tornar a cultura mais barata.
Dados do Instituto Nacional de Estatística indicam que, no ano de 2019, 53,6% dos portugueses não visitaram um espaço cultural. Valores como este podem parecer elevados, mas quando interpretamos o facto de o salário médio português ser abaixo dos 1100 euros, quando 18,4% da população está em risco de pobreza (rendimentos abaixo de 554 euros mensais), rapidamente entendemos que a cultura não está na lista de prioridades de uma grande parte da população e também do estado, já que o peso da cultura no orçamento do país em 2023 fica aquém dos 0,5%.
A cultura em séculos passados era apenas acessível aos estratos sociais mais elevados (como evidenciado pela literatura romancista da época como os Maias), mas hoje apesar de existirem uma plenitude de espetáculos e museus gratuitos ou quase gratuitos, a condição socioeconómica é uma barreira que ainda não se derrubou. A elevada precariedade portuguesa, demonstrada pelos baixos salários e muitas horas de trabalho, comparativamente com o resto da União Europeia, faz com que exista uma grande porção da população que simplesmente não vê a cultura como um uso eficaz do seu tempo, seja devido a cansaço, falta de incentivo ou a outras tarefas que tenha além do trabalho.
As influências sociais, seja a família ou o circulo de amigos constituem um incentivo importante para a cultura, de acordo com o estudo realizado pelo PolObs, no âmbito da candidatura de Braga a Capital Europeia da Cultura 2027, apenas 10% das pessoas visita espaços culturais ou vai a espetáculos sozinho. Assim sendo, tendo em conta as estruturas sociodemográficas é correto assumir que famílias com mais rendimentos irão incentivar mais desde cedo o acesso à cultura. Mesmo que a família não seja essa fonte de incentivo, um indivíduo com mais posses e educação é mais provável de ir a um evento cultural devido também às influências do seu meio, perpetuando assim um ciclo de desigualdade no acesso à cultura, já que a mobilidade social parece cada vez mais ser apenas um mito urbano.
Em suma, é crucial desmitificarmos a ideia de que já eliminamos todas as barreiras à participação cultural. Estas continuam presentes através de problemas estruturais, cuja tendência tem sido agravarem-se com crises sucessivas e o contínuo aumento das desigualdades sociais. Enquanto não conseguimos mitigar esse problema, cabe aos municípios auscultar a sua população e fixar uma agenda cultural menos elitista que vá ao encontro das camadas mais desfavorecidas.
TEXTO DE: Rui Rodrigues
Artigo publicado em parceria com a Associação de Debates Académicos da Universidade do Minho