Itália, Quo Vadis?
O rescaldo das eleições legislativas em Itália traz-nos a crónica de uma vitória há muito anunciada.
Os muitos anos de instabilidade política no país, com a eleição e queda de sucessivos executivos de frágil apoio parlamentar, levaram, como no passado, a população a saturar-se das forças políticas tradicionais e defensoras do modelo democrático liberal ocidental.
Se a Itália seria um exemplo de estabilidade política durante o pós-Guerra, com os vários executivos da Democracia Cristã e com o Partido Comunista como maior partido da oposição, a queda e transfiguração destes dois partidos antagónicos, durante a década de 90, abriu terreno para uma reconfiguração do panorama político.
Assistimos ao sucesso político de Silvio Berlusconi ao longo das últimas décadas, à ascensão do antisistema Movimento 5 Estrelas e à popularização da Liga Norte, um movimento regionalista posteriormente instrumentalizado por Matteo Salvini como um partido populista e xenófobo de âmbito nacional. A vitória nestas Eleições do partido ultraconservador Irmãos de Itália de Giorgia Meloni, herdeiro de movimentos fascistas do século XX, era um novo episódio desta série de fenómenos há muito anunciado pelas sondagens.
As consequências parecem claras. Um executivo liderado por Meloni, com a participação e sustentação de Salvini e Berlusconi e das suas respetivas forças políticas garante à extrema-direita italiana um caminho livre para impor a sua agenda. Esperam-se retrocessos em
matérias sociais (no que toca aos direitos das minorias sexuais, étnicas e raciais e ao aborto livre e seguro) e uma política económica ultraliberal, de degradação dos direitos trabalhistas e das condições de vida da população, com um incentivo e um fortalecimento da elite económico-financeira, como é apanágio do ideário destes partidos. Também a nível externo se esperará uma Itália mais próxima das posições da Hungria de Victor Orbán, com ameaças à concórdia do projeto europeu, principalmente no que toca em matéria de acolhimento de refugiados e liberdades individuais.
Podemos reagir a este processo lançando os mesmos chavões e lugares comuns do costume, com a mesma militância vazia e oca de rede social e com os mesmos apelos emocionados por parte dos ativistas de carteira profissional, mas, caso não tenham reparado, tal não tem surtido o efeito pretendido. Podemos também olhar para este caso, interligando-o com a ascensão da extrema-direita noutros locais, percebendo com rigor e seriedade as razões deste sucesso e o descontentamento das populações em relação aos sistemas, instituições e partidos democráticos. Podemos ostracizar a priori quem votou em Donald Trump, Marine Le Pen, André Ventura ou agora em Giorgia Meloni, condenando-os perpetuamente às margens do sistema político. Podemos também não olhar para todas estas pessoas como saudosistas do nazi-fascismo, mas pessoas a quem o modelo político-económico falhou e que merecem uma alternativa para não voltarem a cair em semelhantes embustes. Podemos olhar para as consequências futuras que cogitamos, ou olhar para as causas, para que tal não se repita.
Os próximos anos serão um teste de fogo à capacidade do modelo democrático liberal resistir ao avanço do populismo de Direita. O aumento do custo de vida na Europa que já tanto tem degradado as condições de vida dos seus cidadãos e cidadãs terá tendência para um agravamento, especialmente em países, como o nosso, onde o executivo se abstém de dar a este problema a merecida priorização. Enquanto a classe política insistir num modelo de governação centrado na satisfação dos interesses de uma elite, de mera gestão do funcionamento do Estado e ausente de reformas estruturais que tornem o sistema económico mais responsivo às classes populares e o sistema político mais legitimado por elas, estaremos a criar terreno fértil para o populismo de Direita avançar com a sua própria agenda.
O caso italiano surge como um aviso para os vários executivos europeus – se a resposta à crise económica e financeira que vivemos não existir ou utilizar as receitas austeritárias do passado, a exclusão social e económica levará a um descontentamento capaz de mobilizar milhões em direção às soluções do autoritarismo antidemocrático, mesmo que as suas representem um mal ainda maior.
O avanço da extrema-direita é o sintoma da necessidade de repensarmos o nosso modelo de sociedade. Não nos devemos recolher no nosso próprio conforto, na manutenção do status quo, na defesa acrítica de um sistema político que tem exposto cada vez mais significativas brechas. A tese de Francis Fukuyama ao proclamar a democracia liberal ocidental como derradeira evolução do sistema político e protagonista do “fim da História” prova-se errada diariamente – a urgência do repensar das possibilidades democráticas e da reflexão conjunta sobre as nossas opções coletivas impele-nos à mudança, à reconfiguração, à reimaginação.
Mesmo que para liberais e centristas iluminados, por ignorância ou oportunismo, a esquerda radical seja o reverso da medalha destes movimentos de Direita, a verdade é que esta tem a melhor oportunidade de atacar os problemas estruturais do nosso modelo político, económico e social enquanto encurta terreno para estas forças radicais. Cabe a esta apresentar-se com um projeto alternativo de resposta às reais necessidades e carências das classes populares, sem hesitações. Um projeto que abarque todos independentemente do gênero, raça, classe, orientação sexual, opondo-se ao ódio da extrema-direita e que aponte dedos à desigualdade e às contradições do capitalismo e não aos migrantes e refugiados. Que desenhe um ideal de justiça económica, social e fiscal que mobilize as massas e que passe para elas uma mensagem renovada de esperança, de confiança na alternativa.
É este o único caminho digno no combate à extrema-direita: com construtividade, sem a alimentar, percebendo os seus argumentos e usando-os a favor de um projeto de bem comum. Pelo menos enquanto existe espaço na democracia para o fazer.
Afonso Silva
Artigo publicado em parceria com a Associação de Debates Académicos da Universidade do Minho