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Quatro dias e quarenta horas

Os últimos anos têm conhecido um florescer de novas bandeiras e propostas da Esquerda para a sua visão de sociedade e sistema económico. A colagem destas forças político-partidárias a um passado ortodoxo, de leitura estanque da realidade sob a lente do materialismo histórico e o surgimento de novas roupagens das forças antagónicas à Direita – vejam-se as “flat taxes” dos “entrepreneurs” da Iniciativa Liberal e a forma como seduzem novas gerações de eleitorado (ou “client base”) para uma ideia de neoliberalismo “cool”, “fresh” e “clean”.

 
Afonso silva


Esta dinâmica não é necessariamente negativa, pelo contrário. Vivemos numa era de alheamento das instituições políticas por parte da população – vejam-se os números da abstenção dos diversos atos eleitorais e o descrédito a que estão votadas as entidades representativas, como os partidos políticos. Nessa ótica, é interessante que a classe política (e a Esquerda política em particular) nos traga novas ideais, propostas e visões de sociedade, numa tentativa de reanimar as massas e convidá-las novamente para abraçarem projetos coletivos.

 
 


Exemplos muito nítidos são os debates recentes sobre o “Green New Deal” ou o Rendimento Básico Incondicional, ambos trazidos pelo LIVRE, também ela uma nova força parlamentar e herdeira de uma certa tradição social-democrata.


Independentemente da sua oportunidade, são propostas que geram reflexão e debate, para lá das fronteiras partidárias. Este texto não se focará em nenhuma delas, apesar de ter posições díspares em relação a ambas, mas num debate mais presente na “espuma dos dias” e que o Partido Socialista já nos tinha adiantado durante a última campanha eleitoral para as Eleições Legislativas – a semana de trabalho de 4 dias.

 
 


A intenção é clara – agradar à Esquerda que é historicamente fiel à luta trabalhista e navegar na já referida inicialmente “onda” de novas bandeiras de rejuvenescimento da arena política. Traz uma premissa arrojada, admitidamente – a estrutura do final de semana do sábado e do domingo faz parte da vida coletiva e de toda a nossa conceção de tempo escolar e de jornada de trabalho para milhões de cidadãos e cidadãs.


É um debate que vale a pena ter, mas que pode ser amplificado para algo, a meu ver, mais estrutural e crucial – uma reflexão sobre o horário semanal de trabalho.
Faço um apontamento prévio e que não perco em vista nesta reflexão – qualquer reorganização da semana de trabalho que não contemple uma redução considerável das horas trabalhadas é um embuste, uma maquilhagem ao nível das que o executivo
de António Costa nos sabe oferece. É uma oferta de um dia de descanso em troca de quatro dias de trabalho absolutamente sobrecarregados, com prejuízo para a vida pessoal e familiar das/os trabalhadoras/es, para a sua saúde e até para a sua
produtividade.

 


Os benefícios de mais um dia de descanso semanal são assinaláveis – acima de tudo, reforça o papel do fim de semana como um período de recuperação de energia, com mais oportunidade para investir na vivência familiar, na fruição e no ócio, essenciais
para nos relembrar a nossa natureza enquanto pessoas e não como instrumentos de trabalho e para salvaguardar holisticamente o nosso bem-estar enquanto indivíduos e comunidade.


Dito isto, só será possível que a medida cumpra o objetivo a que se propõe se o horário de trabalho abandonar as 40 horas semanais. A luta pelas 40h foi uma reivindicação e uma conquista da Esquerda após o 25 de abril de 1974. Quase cinquenta anos depois, perdemos coletivamente a força de aspirar a mais, conformando-nos com uma jornada de trabalho altamente limitadora, considerando a duração dos movimentos pendulares, especialmente nas zonas urbanas.

 


Apostar na reivindicação das 35h semanais, nesta fase, é uma das mais certeiras ações que a Esquerda, nos seus múltiplos agentes políticos, pode levar a cabo. Como é que podemos pedir a um cidadão ou cidadã média que constitua família, que prossiga com
os estudos e formação profissional, que invista tempo e energia em atividades cívicas (voluntariado, associações de desenvolvimento local, etc.) ou políticas, que consuma atividade cultural, que invista no comércio local, quando o horário de trabalho obstaculiza tudo isso? Este é o debate necessário numa sociedade onde a tecnologia nos liberta de tarefas antes exclusivamente analógicas e onde a emergência climática impõe uma inversão das nossas prioridades de produção.


É um debate que deve preceder o da reorganização da semana de trabalho, por dois motivos principais: materializa concretamente os benefícios que a semana de 4 dias apregoa mas que pode, “per se”, não trazer e é mais inclusivo com os trabalhadores/as com folgas rotativas, sem a “fronteira” do fim de semana delineada, concentrados nas áreas do comércio, restauração e serviços, principalmente.

 


A redução do horário de trabalho permitiria ela sim que um trabalhador pudesse optar por uma semana de trabalho mais concentrada e um fim de semana alargado ou vice-versa. Sem ela, estamos a mascarar de progressismo um problema estrutural da nossa sociedade e economia. Apenas a redução garante que todos e todas as trabalhadoras possam, concretamente, ganhar tempo útil para se dedicarem a si, aos seus e à comunidade.


Mas não nos iludamos – a redução da jornada de trabalho apenas chegará com a organização dos próprios trabalhadores/as. Apenas com a ação coletiva de quem mais padece com a semana de trabalho podemos solidificar essa reivindicação, ancorados nas organizações sindicais e nos movimentos político-partidários da Esquerda. Essa organização não pode apenas traduzir-se na pressão à classe governante mas na oposição aos instrumentos ideológicos da ordem económica dominante, que vê essa conquista com o olhar reticente de sempre. É necessário o poder da argumentação para vencer a descrença até da própria classe e mostrar que até na produtividade
existem impactos positivos evidenciados, além do tudo mais referido – trabalhadores mais motivados e equilibrados são comprovadamente mais eficazes e capazes no desempenho das suas tarefas.

Concluindo, falei da necessidade de novas propostas e ideias, na tentativa de apresentar renovados projetos a uma massa cidadã cada vez mais desanimada. Mas, por vezes, o retomar de lutas antigas com uma abordagem rejuvenescida é mais simples e certeiro em mostrar às pessoas o caminho a seguir. Saibamos coletivamente perceber as necessidades e carências da nossa população e apontar as soluções, sem embustes.

Texto: Afonso Silva

Artigo publicado em parceria com a Associação de Debates Académicos da Universidade do Minho

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